Meu pai e eu não poderíamos ser mais diferentes. Eu sou gremista, ele, colorado; Eu gosto de rock e amo um enlatado americano - como ele chama -, ele só ouve música de raiz - como também chama. É tão tradicionalista que chega a dar nojo. Um nojo poético, digamos. Ele é liberal convicto, eu flerto com várias saladas políticas, muito apesar de ter um ímpeto de Voltaire que me seduz. Ele, apesar de ser um baita cérebro, ama uma sessão indolor de Datenas e Rodrigos Faros - este último em pleno domingo, é mole? Já eu prefiro enfiar a cabeça numa betoneira a acompanhar a empreitada. Só que ele entende de arrobas e de bushels, fala de economia e deixa meio mundo calado - já eu, só sei que, felizmente, essas coisas me alimentaram a vida inteira. Perdão por não gostar do que faz seus olhos brilharem, pai. Um homem do campo pai de uma pseudo-patricete-urbana meio desmioladinha... é, a vida prega peças.
Ele é tão canceriano que chega a dar raiva - tão chantagista emocional, tão de lua, tão doído de suas dores genuínas - ai de mim se falar algo desviado, a criatura vai jogar aquilo na minha cara por dias. Papai, você é meu inferno astral - e, como vocês sabem, só num inferno se encontra redenção. Papai, você é a minha, você calma meu coração com um talento que me comove. Te amo tanto que sinto meu músculo cardíaco agoniado.
Muito embora eu odeie mortalmente essas datas comerciais (como eu odeio!!!!!!!), elas entram sorrateiramente no seu inconsciente e você se pega pensando nas pessoas capitalizadas e homenageadas em questão. E pensando sobre a relação longe de ser perfeita que mantenho com esse paizinho, eu também vejo que somos tão iguais no fundo. Chego a rir sozinha ao me ver ocultando tudo - t u d o - que é anúncio no Instagram. Fugindo de marcações de promoções no Facebook - já viram flyer de festa na minha página outorgando que eu vá àquele inferninho, porque é a festança do século? Nem verão, porque eu simplesmente bloqueio esses senhores. Se eu quiser festa, eu procuro, sim? Sai daqui com essa propaganda invasiva de merda. Ai, eu sou tão papai. Uma das lembranças mais ricas que tenho dele na infância é a de chegar com seu suplemento robusto de jornais (um aficionado por jornais e revistas desde sempre, e eis-me aqui jornalista) e de rasgar, um por um, os encartes de lojas variadas que vinham encobertos pelas notícias da zêagá dominical. Uma grosseria, claro, talvez até digna de internação para uns; Para mim, poesia. Ali meus olhos brilhavam e eu via que tinha um pai de personalidade, jamais um ser humano comum. Logo, cresci e me tornei essa moça adorável que rasga anúncios assim que os recebe. Deixa eu tentar ser feliz com essa caralha de sapato que eu já tenho, por favorrrrrr. Dois corações unidos pelo ódio ao que querem nos enfiar goela abaixo é amor demais, é amor que perpassa a vida.
Jamais um ser humano comum. Em hipótese nenhuma, um ser humano comum. Meu pai cativa ou provoca náusea, nunca indiferença. Creio ser igualzinha. Temos nossas diferenças, mas bem no fim o que sobra é o amor, o zelo, a admiração, a criação - nunca esqueçam que a criação é uma das coisas mais fortes de que um ser humano é feito. E da minha eu me orgulho imensamente. Eu me orgulho imensamente de rasgar encartes de propagandas pois você me fez assim, paizinho. Ninguém mandou criar uma filha bem dona do próprio nariz.
Auxiliou no post:
Ode to my family - The Cranberries
Ode to my family - The Cranberries
Comentários