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Uma loteria infernal

       A tragédia está ao alcance de nós todos sempre, bastando que abramos algum portal de notícia ao redor do mundo. Ou catemos na TV algum programa policialesco sensacionalista. Nunca o absurdo foi tão banal, tão corriqueiro, tão "de casa": definitivamente estamos vacinados. Só que a coisa muda de parâmetro, quando acontece no nosso quintal - a proximidade apavora e dilacera os - outrora - resignados. Em nosso quintal tudo aparece apático, nada acontece. É normal, é da natureza do nosso senso de comunidade: enquanto espectadores a quilômetros e idiomas de distância, nada parece merecer tanta atenção - não por insensibilidade, claro, nos chocamos do mesmo jeito, mas não há o sentimento de identificação gratuita. Todavia, o quadro muda de figura ao presenciarmos ruas que já percorremos, rostos com quem já cruzamos, seres com quem já tivemos algum tipo de relação, lugares que já frequentamos... ao presenciarmos, principalmente, histórias que se cruzam e que nos fazem alimentar angústias permeadas por coincidências, movimentações traiçoeiras, banalidades que, miseravelmente, podem ter custado uma vida.
        Definitivamente, ninguém está preparado para uma catástrofe como a ocorrida na boate Kiss, em Santa Maria. Ninguém está preparado, realmente, para a finitude - ainda mais uma finitude naquelas circunstâncias aterradoras. Estive no estabelecimento cenário da tragédia na sexta-feira, 25, com um grupo de amigos - e pensar que por um triz de 24h não compartilho de sentimentos mais penosos nesse início de semana me enche de dor, alívio, angústia e variadas hipóteses torturantes. É impossível não pensar, vocês sabem. Se estiveram lá na sexta, como eu, entenderão meu desabafo. Sorte? Destino? Anjo da guarda? De quem é a culpa? Existe culpado? As flores do quintal estão mortas, e não como plantá-las de novo.
       Não há como ficar indiferente a um troço desses, honestamente. Mesmo quem teve a dádiva de não estar diretamente ligado à situação, não consegue desviar o foco de atenção. É como se sentíssemos certa "culpa" por termos ficado e seguido sorrindo, apesar de tudo, e tocando nossas vidinhas prosaicas. Abateu-se sobre nós uma capa de tristeza e com ela seguiremos vestidos sabe-se la até quando. E os olhos... ah, eles enchem de água, a todo momento.





         Até hoje, perto de 2h, ainda não havia "pregado o olho". Sentia sono, mas a cabeça não acompanhava os olhos. Descompasso total, misturado a um vazio gigante. Fiquei sabendo do incidente por intermédio de um primo, que me ligou na madrugada de domingo, perto de 4h30min, aflito, perguntando se eu estivera na casa noturna, uma vez que eu comentei durante a semana que estava "a fim de ir". Atendi ao telefone, um tanto contrariada por ter sido acordada, mas o fiz até de maneira despreocupada e brincalhona - como é do meu feitio - e o tranquilizei, dizendo me encontrar, naquele momento, na casa dos meus pais. Então ele me relatou que havia ocorrido um incêndio e que estava ajudando feridos, no hospital de guarnição no qual "serve". A partir dali, foi como se eu tivesse levado uma paulada na cabeça, literalmente. Liguei a luz do meu quarto e não consegui mais dormir. Em um primeiro momento, me lembrei do meu irmão, que ficara em Santa Maria, entretanto, como sei que meu caçula não costuma ir a festas no fatídico local, cheguei a ensaiar um alívio. Porém, só fiquei em paz, quando escutei sua voz - também contrariada ao telefone, em virtude de ter sido acordado por mim, que ligava apreensiva há alguns minutos.
         Após isso, a cada amigo que eu confirmava ter ficado em casa dormindo, um sopro de alegria invadia meu coração agoniado. Mas a cada atualização das notícias, eu ficava mais e mais horrorizada. Não é preciso conhecer alguém para se solidarizar e sofrer; basta ser humano e se colocar na situação. Ninguém está livre de ser protagonista de um filme de terror desse. É uma loteria infernal. Loteria, pois nós, jovens, seguiremos prestigiando festas em locais similares ao da tragédia - quiçá os que saíram ilesos disso também, algum dia, pois a vida seguirá de alguma maneira. Há de seguir. É loteria, pois somos jovens e queremos celebrar nossos amigos e nossas vidas, e ter a certeza de que vamos chegar inteiros em casa. Loteria, pois somos ingênuos o bastante para acreditar que há cuidados com segurança e comprometimento das pessoas que respondem pelos locais que frequentamos. Loteria, pois nunca se acredita que o pior vai acontecer. Como bem li em algum lugar por aí: "ninguém vai a algum lugar e fica paranoico, buscando por saídas de emergência". Faz um sentido brutal.
          Desde então, o torpor segue. A cada vez que vejo o nome do município que aprendi a amar em poucos meses de vivência, manchando de sangue a imprensa nacional, o nó na garganta se torna mais forte. Quem conhece Santa Maria, sabe que se trata de uma cidade convidativa, alegre, jovem, sempre com muita gente bonita nas ruas, sempre com muitas opções de lazer. É uma cidade que acolhe qualquer pessoa, sempre oferecendo muita vida em todos os aspectos. Vida à disposição de quem quiser viver sob seu céu - talvez por isso seu epíteto, "Coração do Rio Grande". E agora, o "coração" sangra, sofre, chora. Não há como dimensionar o espírito de luto que se instaurou também no coração de seus filhos - sejam eles nascidos dele ou "adotados". As palavras perderam o sentido, bem disse Carpinejar. Apenas.



 

     




 
     

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