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Lorena ainda não sabe lidar com a corrente elétrica – Capítulo 1

Ela dizia que não se importava mais, Lorena, a cética. Mas no momento em que o reviu naquela fatídica tarde de verão, indo para o trabalho, sentiu aquela maldita corrente elétrica percorrendo todo seu corpo de novo. A corrente elétrica era a conhecida paralisia incompreensível, que fazia com que todos os ossos fossem tomados por uma energia arrebatadora - e com a qual ainda não sabia lidar de modo racional, por não ter conseguido subtrair aquele rosto da memória. E era isso o que mais doía – mais que sentir o estômago retorcido, os olhos começando a lacrimejar timidamente, o coração atordoado dentro do tronco, como se pudesse ser ouvido a quilômetros de distância dali. E para ela, seus batimentos cardíacos eram ouvidos por todos, em uníssono, como se fossem a pior sinfonia de acompanhar. Tanto que, quando se cruzaram na Avenida Morrinhos, na mesma tentativa de alcançar a calçada, ela não soube o que dizer, ela engasgou nas palavras, ela emudeceu e ficou ali, olhando pro chão, pro nada, perdida nela mesma. Perdida naquela metrópole, que agora era seu lar doce lar – ainda que nem tão tragável. Lorena, a ingênua, fingiu que não o reconhecera – agora que Vítor não usava mais barba. Talvez ele tivesse aparado, a fim de deixar uma fase para trás, era justo. Mas ela ficou arrasada, por notar o que ele fizera com o rosto dele, não era o mesmo, não era a mesma feição. Foram muitas as noites, grudada nele, num exercício quase que de fusão, de hibridismo, logo não se sabia quem era quem.
Evidentemente, a cicatriz no maxilar magro, o jeito como ele sorria quando ficava nervoso – tudo isso permanecia marcado como uma doença no pensamento dela. E foi isso que veio à tona naquela tarde de calor escaldante, em que ele resolveu aparecer sem sua barba política, porém firme com os olhos de ressaca: ele tinha aprendido a engoli-la como ninguém, e possivelmente ainda sabia. E então doía mais um pouco, que remédio. E a pele dela morria, lentamente, pelo toque que não tinha mais. Morria de fome. A corrente elétrica ainda era uma espécie de amor. E gritava.


Auxiliou no post:

O nosso mundo – Barão Vermelho






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