Não tenho dúvidas de que o jornalismo diário embrutece. Aliás, é com pesar que escrevo isso, porque, como o Saramago escreveu, tenho um coração de carne e ele sangra diariamente com a natureza do ofício que escolhi seguir. Talvez eu não tenha sangue para lidar com a coisa, é uma hipótese (com que idade mesmo a gente para de se questionar sobre o que acha que sabe fazer?). E é uma paulada atrás da outra - muitas vezes, ao contrário do que os leigos pensam, realmente não sabemos lidar. Sofremos por ter que mexer em feridas expostas, na carne alheia cheia de fissuras - as psicológicas sempre doem mais.
O tal embrutecimento leva à naturalização dos fatos. A gente até se indigna, mas percebe que possivelmente vá ler mais vezes sobre absurdos - e eles não param de acontecer. Verbo maldito: acontecer. Absurdos como o assassinato cruel do menino Bernardo Uglione Boldrini. Sinceramente, não me entra na cabeça - na mais correta acepção da expressão - que um pai planeje meticulosamente a morte de seu filho. Que vá a alguma festa, beba com amigos, um dia após o ocorrido, e volte para casa, a fim de repousar candidamente em seu travesseiro, enquanto o corpo da criança, agora, encontra-se jogado em alguma vala de uma BR qualquer. Está além da minha compreensão. E, olha, dá um desespero desgraçado de viver num mundo assim. Não é possível, minha gente, que pesadelo esta história... desculpe, Ernesto, mas endurecer sem perder la ternura, tá difícil, viu?
O caso, cujo desfecho se deu na última segunda, 14, assemelha-se ao da menina Isabella Nardoni, em março de 2008, e que foi exaustivamente midiatizado na época. Me lembro de estar no comecinho da faculdade e de ser apresentada a uma tal agenda-setting - ou, em português brasileiro, ''Teoria do Agendamento'' - cujos preceitos acabaram servindo para eu entender a vasta produção noticiosa acerca do infeliz ocorrido. O de agora caminha para isso. Tem-se o espetáculo preferido de programas tidos por ''essencialmente jornalísticos'', como Cidade Alerta e Brasil Urgente, apresentados, respectivamente, pelos caçadores de carnificina Marcelo Rezende e José Luiz Datena. Não raro, Sônia Abrão, com seu senso fúnebre aguçado, também aparece na jogada e promove debates acalorados sobre determinado tema em seu programa diário. Percebam, tais programas até têm seu respaldo baseado no dever de informar o público, mas eles pecam pelo exagero. Eles ignoram o limite do tolerável em se tratando de relevância e da própria ética jornalística (sei que anda em desuso, mas existe, hein). E a audiência, abalada em seu sofá, acaba sendo tragada para este mundo íntimo e pessoal da vítima, o que aumenta a dramaticidade do todo. A riqueza de detalhes é preponderante na criação do ''mártir''. Na consolidação do folhetim policial.
O agendamento é poderoso no que tange, inclusive, à seleção do que iremos discutir socialmente com colegas, pais, amigos, grupos de pessoas das mais diferentes procedências em variados espaços públicos, etc, uma vez que os assuntos veiculados na imprensa ''agendam'' nossas conversas. Ou seja, a mídia nos diz sobre o que falar, pautando grande parte de nossas relações. Enfim, para o bem ou para o mal, vocês ainda verão e ouvirão falar muito mais sobre o menino triste de Três Passos.
O tal embrutecimento leva à naturalização dos fatos. A gente até se indigna, mas percebe que possivelmente vá ler mais vezes sobre absurdos - e eles não param de acontecer. Verbo maldito: acontecer. Absurdos como o assassinato cruel do menino Bernardo Uglione Boldrini. Sinceramente, não me entra na cabeça - na mais correta acepção da expressão - que um pai planeje meticulosamente a morte de seu filho. Que vá a alguma festa, beba com amigos, um dia após o ocorrido, e volte para casa, a fim de repousar candidamente em seu travesseiro, enquanto o corpo da criança, agora, encontra-se jogado em alguma vala de uma BR qualquer. Está além da minha compreensão. E, olha, dá um desespero desgraçado de viver num mundo assim. Não é possível, minha gente, que pesadelo esta história... desculpe, Ernesto, mas endurecer sem perder la ternura, tá difícil, viu?
O caso, cujo desfecho se deu na última segunda, 14, assemelha-se ao da menina Isabella Nardoni, em março de 2008, e que foi exaustivamente midiatizado na época. Me lembro de estar no comecinho da faculdade e de ser apresentada a uma tal agenda-setting - ou, em português brasileiro, ''Teoria do Agendamento'' - cujos preceitos acabaram servindo para eu entender a vasta produção noticiosa acerca do infeliz ocorrido. O de agora caminha para isso. Tem-se o espetáculo preferido de programas tidos por ''essencialmente jornalísticos'', como Cidade Alerta e Brasil Urgente, apresentados, respectivamente, pelos caçadores de carnificina Marcelo Rezende e José Luiz Datena. Não raro, Sônia Abrão, com seu senso fúnebre aguçado, também aparece na jogada e promove debates acalorados sobre determinado tema em seu programa diário. Percebam, tais programas até têm seu respaldo baseado no dever de informar o público, mas eles pecam pelo exagero. Eles ignoram o limite do tolerável em se tratando de relevância e da própria ética jornalística (sei que anda em desuso, mas existe, hein). E a audiência, abalada em seu sofá, acaba sendo tragada para este mundo íntimo e pessoal da vítima, o que aumenta a dramaticidade do todo. A riqueza de detalhes é preponderante na criação do ''mártir''. Na consolidação do folhetim policial.
O agendamento é poderoso no que tange, inclusive, à seleção do que iremos discutir socialmente com colegas, pais, amigos, grupos de pessoas das mais diferentes procedências em variados espaços públicos, etc, uma vez que os assuntos veiculados na imprensa ''agendam'' nossas conversas. Ou seja, a mídia nos diz sobre o que falar, pautando grande parte de nossas relações. Enfim, para o bem ou para o mal, vocês ainda verão e ouvirão falar muito mais sobre o menino triste de Três Passos.
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GK